quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Completude da Informação Ocupação nos Registros Hospitalares de Câncer do Brasil: Bases para a Vigilância do Câncer Relacionado ao Trabalho

INTRODUÇÃO

       O ambiente de trabalho é um meio onde ocorrem as maiores concentrações de agentes cancerígenos em relação a outros ambientes extralaborais1 . Mais de 40 agentes químicos, misturas e circunstâncias de exposição estão associadas aos diferentes tipos de câncer, como o benzeno (leucemia), o formaldeído (câncer de nasofaringe), o níquel (câncer de pulmão), todas as formas de amianto (mesotelioma, câncer de pulmão, de ovário e de laringe), a sílica (câncer de pulmão), a poeira de madeira (câncer de nasofaringe), a poeira de couro (câncer de cavidade nasal), assim como as seguintes ocupações: trabalhadores da indústria de alumínio (câncer de pulmão e de bexiga), gaseificação do carvão (câncer de pulmão), produção de coque (câncer de pulmão), fundição de ferro e aço (câncer de pulmão), indústria de produção da borracha (leucemia, câncer de pulmão, de bexiga e de estômago), função de pintor (câncer de pulmão e de bexiga) e soldador (melanoma e câncer ocular), entre outras2,3.

       A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima em 19% o percentual de todos os tipos de câncer que podem ser atribuídos ao ambiente, incluindo o do trabalho. Para o Brasil, a estimativa de incidência de câncer, para 2014, é de 576.580 casos novos4 , o que corresponderia a 109 mil casos atribuídos ao ambiente. De acordo com a fração atribuível de 4% aos fatores ocupacionais, estimada por Doll e Peto5 , espera-se, para este ano, a ocorrência de aproximadamente 23.000 casos novos de câncer associado ao trabalho.

       A vigilância desses tipos de câncer se baseia em três pilares fundamentais: a vigilância da doença (morbidade e mortalidade), dos trabalhadores expostos e da exposição6 . Em todas as vigilâncias descritas, o uso de informação de boa qualidade é fundamental, e a obtenção dessas informações em bases de dados secundárias, que são de domínio público, poderia facilitar a execução das ações de vigilância. Em relação à vigilância da doença (morbidade), está em vigor a Portaria nº 104, de 20117 , que discorre sobre o Sistema de Informação de Agravos de Notificação, módulo câncer relacionado ao trabalho, de caráter compulsório em unidades sentinelas, cuja utilização precisa ser estimulada e não será objeto deste estudo. As duas outras fontes nacionais de quantificação dos casos de câncer disponibilizadas na Internet são os Registros de Câncer de Base Populacional ou Hospitalar, sendo as informações sobre ocupação registradas no segundo, discutidas no presente artigo.

       Segundo o manual "Registros Hospitalares de Câncer - Planejamento e Gestão”8 , a variável "ocupação", no Sistema de Informações dos Registros Hospitalares de Câncer (SisRHC), se refere à atividade na qual uma pessoa economicamente ativa trabalha ou trabalhou (nos casos de aposentados ou desempregados). A ocupação principal é registrada e corresponde à atividade que o paciente desempenhou por mais tempo, desde que não exista intervalo de tempo superior a dez anos entre o encerramento da referida atividade e a data atual ou da aposentadoria no caso de inativos. Para codificar as profissões, utilizaram-se os códigos da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), do Ministério do Trabalho9 , no nível de agregação de três dígitos, adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no Censo Populacional de 1980.

       Deve-se ressaltar que existe uma equipe multiprofissional envolvida na admissão do paciente na unidade hospitalar desde a triagem e durante todo o processo da linha de cuidado, tratamento e reabilitação (recepcionistas, equipe técnica, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, entre outros). A valorização e o estímulo do registro do histórico ocupacional nos diversos documentos clínicos, incluindo prontuários, devem ser responsabilidade de todos, e são de fundamental importância para os tipos de câncer mais estritamente relacionados ao trabalho, como o mesotelioma, os cânceres de pulmão, bexiga e leucemias1,6. A falta ou preenchimento incompleto dessa informação dificulta: i) uma investigação rápida e de baixo custo; ii) a identificação da ocupação como fator de risco importante para o desenvolvimento do câncer; iii) o estabelecimento do nexo causal e compensação às vítimas; iv) elaboração de estratégias de vigilância do câncer relacionado ao trabalho6,10.

       O objetivo deste artigo é quantificar o percentual de ausência de informação sobre ocupação nos Registros Hospitalares de Câncer (RHC) do Brasil. 


MÉTODO

       Trata-se de um estudo epidemiológico do tipo ecológico com dados de casos de câncer extraídos do integrador, de domínio público, SisRHC, de 21 Estados brasileiros e do Distrito Federal. Os Estados do Amapá, Goiás, Maranhão, Rondônia, Roraima e São Paulo não tinham casos registrados no integrador na data da extração dos dados (27 de março de 2014).

       Foram analisados, para cada sexo, os casos com idade maior ou igual a 30 anos que tiveram a sua primeira consulta na unidade entre 2000 e 2008, e cujo tumor primário foi classificado de acordo com a 10ª Revisão de Classificação Internacional de Doenças (CID-10) entre os seguintes tipos: pulmão (C34); bexiga (C67); cavidade oral, faringe e laringe (C10-C14, C32); e leucemias (C91, C92, C93, C94, C95).

       As localizações primárias de câncer selecionadas foram definidas com base na literatura que discorre sobre 209 Completude da Informação “Ocupação” nos RHC Revista Brasileira de Cancerologia 2014; 60(3): 207-214 os principais tipos de câncer relacionados à ocupação: pulmão, bexiga e mesotelioma1 . Os casos de mesotelioma não puderam ser analisados, dada a casuística reduzida nos RHC no período do estudo - 50 casos em mulheres e 94 casos em homens. No entanto, foram inseridos casos de leucemia pela relevância dessa doença no Brasil (9º e 10º tipos de câncer mais incidentes em homens e mulheres, respectivamente)4 e pela associação estrita com a ocupação e exposição ao benzeno, problema relevante de saúde pública11,12. Também foram incluídas as neoplasias da cavidade oral, faringe e laringe pela associação dessas com exposições ocupacionais conhecidas, tais como: poeiras de madeira, de couro, sílica, entre outras6 .

       Para alcançar os objetivos, as seguintes variáveis foram utilizadas: Unidade da Federação da unidade hospitalar; ano da primeira consulta; sexo; idade; localização primária do tumor; tipo histológico (somente para as leucemias); e ocupação. Foram classificados como sem informação sobre ocupação aqueles casos em que a ocupação não estava registrada ou não pode ser classificada conforme a CBO9 .

       Foram calculadas as proporções de ausência de informação sobre ocupação para Brasil e regiões, por neoplasia e sexo, para cada ano do período estudado. Para avaliar visualmente a tendência temporal, foram construídos gráficos por tipo de neoplasia e sexo para as regiões durante o período considerado.

      No processo de extração e análise dos dados, foram utilizados o TabNet Linux 2.6 - Tabulador Hospitalar e o pacote estatístico Stata 12.0.


DISCUSSÃO

      O presente estudo mostra um elevado percentual de ausência de informação sobre Ocupação nos RHC considerando Brasil e regiões, em ambos os sexos. Para as neoplasias selecionadas, observam-se melhoras no registro da ocupação ao longo do tempo em algumas regiões, representadas pelo declínio do indicador, mas essas ainda são incipientes (em torno de 30%), considerando que a variável ocupação é de preenchimento obrigatório.

      As estatísticas de morbidade e mortalidade são hoje uma ferramenta muito utilizada para o conhecimento do perfil epidemiológico de uma população, elaboração de indicadores de saúde, análise de tendências, indicação de prioridades e, consequentemente, para o planejamento de ações em saúde pública. Especialmente para o câncer, cuja cobertura de registros de base populacional ainda é pequena, os dados de incidência são subestimados, restando muitas vezes aos serviços de análise de situação de saúde trabalhar com os dados de mortalidade como uma proxy da magnitude da doença, corrigidos por sua letalidade; ou aos dados de internação, para estimar a quantidade de casos que demandam serviços de saúde. Neste sentido, os RHC são fundamentais para obtenção dessas informações13. Para que a vigilância seja eficiente, é necessário, portanto, que essas informações sejam de boa qualidade14. 

       No documento "A construção da Política de Informação e Informática em Saúde do Sistema Único de Saúde", de 2003, destacam-se as características sociodemográficas, tais como: idade, gênero, raça/etnia, escolaridade, ocupação e classe social, que podem ser utilizadas para a realização de estudos que avaliem as desigualdades em saúde e o acesso da população a serviços de qualidade, oportunos e humanizados15.

       Estudos internacionais descrevem que certidões de óbito e registros médicos são úteis para investigação de doenças relacionadas ao trabalho e vigilância entre os trabalhadores adultos16. Embora sejam boas fontes de dados, ainda são imperfeitos, com alta frequência de erros de preenchimento e sub-registro de informação, a ponto de serem suficientemente graves para afetar a precisão da causa da morte codificada17, enquanto outros demonstram sucesso na melhora da qualidade dos dados, com treinamento de baixo custo e otimização de tempo18.

       Por conta disso, o papel do registro da ocupação é frequentemente subestimado, particularmente em relação às interações gene-ambiente, devido à imprecisão das estimativas da exposição ocupacional19. Dessa forma, muitas exposições e seus efeitos correspondentes são pouco avaliados, mas têm uma ampla presença no ambiente, tornando assim a sua verdadeira contribuição etiológica difícil de interpretar20,21.

       Entre as estratégias para a efetivação da Atenção Integral à Saúde do Trabalhador, destaca-se a implementação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador, cujo objetivo é integrar a rede de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), voltados à assistência e à vigilância, além da notificação de agravos à saúde relacionados ao trabalho em rede de serviços sentinela22. O Ministério da Saúde, por meio da Área Técnica de Saúde do Trabalhador (CGSAT) e da Unidade Técnica de Exposição Ocupacional, Ambiental e Câncer do INCA, está sensível a essa necessidade e propôs protocolos e diretrizes para a abordagem do câncer, no que tange aos seus fatores causais relacionados ao trabalho. 

       De fato, no ambiente de trabalho, é possível intervir de forma inequívoca no controle da exposição, seja pelo caráter bem delimitado da população, seja pelo potencial Figura 2. Percentual de ausência de informação sobre ocupação nos Registros Hospitalares de Câncer do Brasil, segundo regiões e tipos de neoplasias, 2000-2008, sexo feminino Fonte: Integrador dos Registros Hospitalares de Câncer do Brasil . 212 Grabois MF, Souza MC, Guimarães RM, Otero UB Revista Brasileira de Cancerologia 2014; 60(3): 207-214 técnico de monitorar e reduzir esses riscos. Para consolidar essa estratégia, foram publicadas portarias para fortalecer a notificação das doenças ocupacionais, entre elas o câncer ocupacional. Em 2004, foi publicada a portaria 777, que dispõe sobre os procedimentos técnicos para a notificação compulsória de agravos à saúde do trabalhador em rede de serviços sentinela específica de Notificação Compulsória de Acidentes e Doenças Relacionados ao Trabalho, no SUS23, regulamentando a notificação compulsória de agravos à saúde do trabalhador – entre eles o câncer relacionado ao trabalho. Ainda, estabeleceu que a rede sentinela deva ser organizada a partir da porta de entrada no sistema de saúde, estruturada com base nas ações de acolhimento, notificação, atenção integral, envolvendo assistência e vigilância da saúde. Define, finalmente, que os procedimentos técnicos de Vigilância em Saúde do Trabalhador deverão estar articulados com aqueles da Vigilância Ambiental, Sanitária e Epidemiológica

       Na sequência, em 2010, foi publicada a portaria 2.472, que define a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional24. Em 2011, foram incluídas as doenças e agravos em saúde do trabalhador, entre essas, o câncer ocupacional7 – portaria vigente para o estabelecimento do fluxo de vigilância de todas as doenças de notificação compulsória. 

       Finalmente em 2012, foi publicada a Política Nacional de Saúde do Trabalhador (Portaria 1.823), que define como estratégias de vigilância em saúde a análise do perfil produtivo e da situação de saúde dos trabalhadores, o que pressupõe a identificação do trabalhador, incluindo o registro de sua ocupação, ramo de atividade econômica e tipo de vínculo nos sistemas e fontes de informação em saúde, incluindo os Registros de Câncer de Base Populacional e Hospitalar. Observa-se, com isso, que o sistema encontra-se mais sensível à vigilância do câncer ocupacional, de forma a estimular ações de prevenção primária e secundária nos serviços de saúde.

       Todas essas tentativas, portanto, são reconhecidas como estratégias para garantir a melhora da qualidade da informação a respeito da exposição ocupacional e a ocorrência de câncer. É necessário, pois, que a informação sobre ocupação seja assegurada nos registros, para que seja possível a qualificação dos casos de notificação compulsória (através do SINAN) e dos registros de internação, de forma a contribuir para a adequada vigilância dos casos de câncer relacionados ao trabalho.


CONCLUSÃO

       Os resultados deste estudo revelaram um elevado percentual de ausência de informação sobre Ocupação nos RHC do Brasil. Esforços devem sem realizados para melhoria do registro e da qualidade dessa informação em todos os documentos hospitalares e ambulatoriais que servem como base para o Sistema de Informação em Saúde, visando a contribuir na elaboração e implementação de ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador no país.


REFERÊNCIAS:

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7. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelecer fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. 
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24. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.472, de 31 de agosto de 2010. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelecer fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. 
25. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do trabalhador e da trabalhadora.  

Grabois, Marília Fornaciari; Souza, Mirian Carvalho de; Guimarães, Raphael Mendonça; Otero, Ubirani Barros.
Rev. bras. cancerol; 60(3)2014.
Artigo em Português | Coleciona SUS | ID: sus-28431

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